sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Pessanha, Fernando


   

 O horizonte assomava-se apontado a norte,ostentando um singular turvo cinza-esverdeado,
coroado de indefinida visibilidade. Lentamente,foram surgindo novas formas, inicialmente
amorfas mas, posteriormente, dotadas de traços mais acentuados e definidos, tanto a estibordo
como a bombordo: as embaciadas margens que se aproximavam. Ondas de curiosos reflexos prateados atiravam-se de encontro ao casco da embarcação, libertando gorgolejantes laivos de espuma e salpicastes gotas salgadas em redor da proa. A maré, ainda cheia, começava a vazar  impetuosamente, embalada pelo sopro determinado do vento, tornando difícil a entrada na barra. Incontáveis tons cendrados pintavam a tela que à proa se apresentava. Tratava-se daquele tipo de cenário que impunha respeito, o respeito subjacente à fragilidade do Homem perante as forças da natureza. Tornava-se urgente lançar âncora de modo a evitar o temporal que se aproximava, de modo a evitar urna outra tempestade no mar. Sim... a noite anterior tinha sido de temoroso temporal, pelo que havia reparações a fazer e mantimentos a comprar.


 In Hotel Anaidaug 



 O sol afundava-se no horizonte daquele final de tarde, tingindo o  ocaso de enrubescidos tons avermelhados. Porém, e não obstante a frieza que se começava a fazer sentir, Miguel não fechava a janela de onde contemplava aquele improvável espectáculo cromático. Os tons alaranjados derramavam naquela estranha tela uma incrédula poesia visual, e Miguel ali se detinha, de cotovelos cravados no parapeito e olhar perdido no poente, aguardando a chegada da sua esposa. Todo aquele espectáculo dava-lhe que pensar... Era o nonagésimo aniversário da sua avó, uma velhinha de rugas profundas e cabelo branco, tão mirrada quanto risonha. Lembrava-se dela com inevitável carinho; o colo que a velha lhe dava quando ele era criança, as histórias que tantas vezes lhe tinha contado, as inúmeras birras que tinha suportado do neto. Entretanto, tinham passado três décadas, e agora era Miguel que dava colo, que contava histórias e suportava as birras da sua filha. A velha tinha ficado muito mais velha, uma criança tinha-se transformado num homem, e esse homem tinha dado origem a uma nova criança. Era o ciclo da vida...Naquele momento, em que afogueados raios de sol trespassavam unia nuvem sombria, Miguel apercebeu-se da absurda fragilidade e brevidade da condição humana. Todos ali estavam, inconscientes espectadores de uma contagem decrescente que os reduziria a pó.
Olhou para trás, virando a cara aos ruborizados raios de sol que esburacavam a nuvem. Olhou para a sua bebé que, no seu parque, brincava inocentemente com os seus brinquedos


in "Encontros Improváveis"

                                             

Fernando Pessanha  foi aluno da  Escola Tomás Cabreira no início do século XXI





Apresentando a sua obra na biblioteca da nossa escola
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Notas biográficas

Fernando Pessanha nasceu em Faro, em 1980. É licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve, e mestrando em História do Algarve, também pela mesma Universidade. Membro do CEPHA (Centro de Estudos do Património e História do Algarve), é autor do ensaio "A Cidade Islâmica de Faro" e de inúmeros artigos de âmbito historiográfico publicados por diversos jornais regionais, para além de formador de História na UTL de Vila Real de Santo António. Encontros Improváveis é a sua primeira obra no campo da ficção. 




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