O horizonte assomava-se apontado a norte,ostentando um singular turvo cinza-esverdeado,
coroado de indefinida visibilidade. Lentamente,foram surgindo novas formas, inicialmente
amorfas mas, posteriormente, dotadas de traços mais acentuados e definidos, tanto a estibordo
como a bombordo: as embaciadas margens que se aproximavam. Ondas de curiosos reflexos prateados atiravam-se de encontro ao casco da embarcação, libertando gorgolejantes laivos de espuma e salpicastes gotas salgadas em redor da proa. A maré, ainda cheia, começava a vazar impetuosamente, embalada pelo sopro determinado do vento, tornando difícil a entrada na barra. Incontáveis tons cendrados pintavam a tela que à proa se apresentava. Tratava-se daquele tipo de cenário que impunha respeito, o respeito subjacente à fragilidade do Homem perante as forças da natureza. Tornava-se urgente lançar âncora de modo a evitar o temporal que se aproximava, de modo a evitar urna outra tempestade no mar. Sim... a noite anterior tinha sido de temoroso temporal, pelo que havia reparações a fazer e mantimentos a comprar.
O sol afundava-se no horizonte daquele final de tarde, tingindo o ocaso de enrubescidos tons avermelhados. Porém, e não obstante a frieza que se começava a fazer sentir, Miguel não fechava a janela de onde contemplava aquele improvável espectáculo cromático. Os tons alaranjados derramavam naquela estranha tela uma incrédula poesia visual, e Miguel ali se detinha, de cotovelos cravados no parapeito e olhar perdido no poente, aguardando a chegada da sua esposa. Todo aquele espectáculo dava-lhe que pensar... Era o nonagésimo aniversário da sua avó, uma velhinha de rugas profundas e cabelo branco, tão mirrada quanto risonha. Lembrava-se dela com inevitável carinho; o colo que a velha lhe dava quando ele era criança, as histórias que tantas vezes lhe tinha contado, as inúmeras birras que tinha suportado do neto. Entretanto, tinham passado três décadas, e agora era Miguel que dava colo, que contava histórias e suportava as birras da sua filha. A velha tinha ficado muito mais velha, uma criança tinha-se transformado num homem, e esse homem tinha dado origem a uma nova criança. Era o ciclo da vida...Naquele momento, em que afogueados raios de sol trespassavam unia nuvem sombria, Miguel apercebeu-se da absurda fragilidade e brevidade da condição humana. Todos ali estavam, inconscientes espectadores de uma contagem decrescente que os reduziria a pó.
Olhou para trás, virando a cara aos ruborizados raios de sol que esburacavam a nuvem. Olhou para a sua bebé que, no seu parque, brincava inocentemente com os seus brinquedos
in "Encontros Improváveis"
in "Encontros Improváveis"
Fernando Pessanha foi aluno da Escola Tomás Cabreira no início do século XXI
Notas biográficas
Fernando Pessanha nasceu em Faro, em 1980. É licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve, e mestrando em História do Algarve, também pela mesma Universidade. Membro do CEPHA (Centro de Estudos do Património e História do Algarve), é autor do ensaio "A Cidade Islâmica de Faro" e de inúmeros artigos de âmbito historiográfico publicados por diversos jornais regionais, para além de formador de História na UTL de Vila Real de Santo António. Encontros Improváveis é a sua primeira obra no campo da ficção.
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